CICLO VIVO – 07/10/2019
Artigo de Ale Nahra
“Quando a gente tá aqui, a gente tá mostrando pro mundo que é possível”, disse Brígida Salgado, responsável pelo projeto Cafés Agroecológicos da Chapada Diamantina, na cerimônia de apresentação das 12 iniciativas selecionados pelo Bota na Mesa, do Centro de Estudos em Sustentabilidade (FGVces) da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getulio Vargas.
O projeto de Brígida foi um dos escolhidos na chamada de trabalhos de 2019, que teve como temas a Mudança do Clima e a Transição Agroecológica. O que é possível, na opinião de Brígida, é a tão necessária mudança do modelo de agricultura atual: das grandes monoculturas dependentes de insumos químicos para uma agricultura regenerativa, que respeita os ciclos naturais, recompõe o solo e promove a saúde das pessoas e do planeta. É consenso que o modelo de agricultura praticado atualmente em larga escala pelo mundo todo precisa mudar.
Os efeitos dessa agricultura no meio ambiente e no clima já se fazem notar mesmo por quem não é especialista ou agricultor. De acordo com o relatório Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC) de 2019, é necessário ocupar melhor a terra e mudar a maneira como pensamos sobre a saúde do solo, uso de fertilizantes, água, adubos. O sistema alimentar atual é insustentável, assim como a cadeia de produção e distribuição que o constrói.
Mas mudar para o quê?
Já existe uma forma de agricultura capaz de regenerar o solo e os ecossistemas destruídos por monocultura de larga escala à base de insumos químicos, e ao mesmo tempo promover acesso amplo à alimentação saudável e a volta do camponês para a terra? Sim, e não é nenhuma novidade. Se chama agroecologia — e está sendo propagada até pela ONU.
É reconfortante ouvir sobre transição agroecológica. É mais animador ainda quando o cenário é uma das maiores escolas de administração do Brasil, de onde saem profissionais que vão comandar organizações cuja atuação é determinante para o bem estar humano e a saúde do planeta. Quem esteve no auditório da FGV em São Paulo na apresentação dos 12 projetos selecionados pelo Bota na Mesa, que aconteceu no dia 12 de setembro, tem razão para ter saído de lá otimista. A transição agroecológica é uma realidade, e através dela a agricultura familiar — e as pessoas que nela trabalham — ganha força e protagonismo.
O mundo dos cafés especiais, por exemplo, oferece aos jovens uma oportunidade de ficar na terra. De acordo com Brígida, do projeto Cafés Agroecológicos da Chapada Diamantina, “a juventude percebeu que poderia ser moderna trabalhando na roça”. Vislumbra-se aí uma agroecologia que não é apenas o cultivo de plantas. “As relações humanas também passam por uma transição”, completa Andréa Mayumi, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento do Estado de São Paulo.
Andréa, que representou o Protocolo de Transição Agroecológica do Estado de São Paulo, outra iniciativa contemplada, contou que, antes, quando a Secretaria de Meio Ambiente aparecia na propriedade, o agricultor já pensava que ia levar uma multa. “Mas, fazendo o manejo do solo de forma agroecológica, o agricultor está fazendo conservação ambiental”.
Grandes empresas cujo negócio tem impacto tanto no ambiente quanto nas populações recorrem à agroecologia quando precisam mitigar danos. A Suzano Papel e Celulose é responsável por grandes monoculturas de eucalipto implementadas, às vezes, em vizinhanças de povoados rurais. Por sofrer com roubo de madeira, a empresa decidiu se envolver com as comunidades. O Programa de Desenvolvimento Territorial Rural da Suzano Papel e Celulose atua em seis estados, fortalecendo comunidades vizinhas dos cultivos de eucalipto, para fomentar a autonomia dos agricultores familiares através da agroecologia.
“NÃO EXISTE CONSTRUÇÃO DE AUTONOMIA SEM A AGROECOLOGIA PARA O PEQUENO AGRICULTOR”, AFIRMOU GIORDANO AUTOMARE, RESPONSÁVEL PELO PROJETO.
Iniciativas governamentais também foram apresentadas: o Plantio Direto de Hortaliças, da Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina, órgão da Secretaria de Estado da Agricultura e da Pesca), fornece assistência técnica para implementação de um sistema que produz hortaliças em consórcio com plantas espontâneas e promove a reconstrução do ambiente de cultivo.
“SANTA CATARINA PRODUZ ORGÂNICOS E AGROECOLÓGICOS HÁ MAIS DE VINTE ANOS”, DESTACA MARCELO ZANELLA, DA EPAGRI.
Custo da produção encarece o produto final
Através de tecnologias de baixo custo, o sistema da Epagri permite que o produto tenha valor de venda menor do que o convencional, com tempo de prateleira de quase o dobro das hortaliças com insumos químicos. Um dos gargalos do programa, segundo Zanella, é o alcance. Para atender mais agricultores, seria necessário mais técnicos. Porém, como destacou Paulo Francisco da Silva, Analista de Extensão Rural da Epagri, esse é um mundo que ainda está sendo desbravado: é uma nova forma de agronomia. Que a Escola Itinerante de Agroecologia — outra iniciativa apresentada pelo Bota na Mesa — se propõe a espalhar. A Escola leva cursos e assessoria para a região de Careiro e Autazes, próximo a Manaus (AM), e ensina a implementação de sistemas agroflorestais a agricultores que não têm familiaridade com esse tipo de policultivo.
A agroecologia pode colaborar também para cidades mais gentis. O prefeito de Louveira (SP), Nicolau Finamore Junior, destacou que o município é um dos únicos da região que ainda pratica a agricultura. Isso faz com que a cidade — que tem cerca de 45 mil habitantes e faz parte do Polo Turístico do Circuito das Frutas — cresça mais devagar, porque a agricultura ocupa grandes áreas e as mantêm produtivas.
“NÃO QUEREMOS SER GRANDES”, DISSE O PREFEITO.
Louveira foi escolhida pelo Bota na Mesa por seus programas que incentivam a fruticultura orgânica e promovem conservação ambiental e diminuição do êxodo rural (Políticas Municipais de Incentivo à Fruticultura e de Pagamento por Serviços Ambientais).
Em Belo Horizonte, o Sistema Participativo de Garantia da Região Metropolitana de Belo Horizonte é voltado para a agricultura urbana, aquela praticada dentro dos limites da cidade. “Vimos na agroecologia uma forma de garantir segurança alimentar para o município de Belo Horizonte”, contou Eulalia de Lima Gomes. O Sistema Participativo de Garantia é um protocolo de certificação agroecológica, e o programa da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte tem o objetivo de promover a cooperação institucional para o fortalecimento da agroecologia na região.
Agricultura familiar e protagonismo de gênero
“As mulheres querem ações que vão além das soluções comuns”, aponta Fernando Mineiro, do Projeto Piloto de Combate à Desertificação na Região do Seridó do RN (da Secretaria de Estado do Planejamento e das Finanças do Rio Grande do Norte). As mulheres pensam em soluções como o biodigestor de fezes de gado para gerar gás de cozinha e o reuso da água cinza (de pias e chuveiros) para irrigar os quintais produtivos, territórios tradicionalmente femininos e que possibilitam a geração de renda para elas enquanto os maridos estão na roça.
“Existem estudos que indicam que quando a mulher se envolve no sistema agroflorestal, a diversidade do sistema é maior”, disse Thais Ferreira Maier, engenheira florestal do The Nature Conservancy que esteve no evento representando o projeto Cacau Floresta — que propõe o cultivo de cacau pelo sistema agroflorestal como alternativa de renda para a população e forma de mitigar o desmatamento na região de São Félix do Xingu e Tucumã, no Pará. Como se diz por aí, sem mulheres não há agroecologia.
Não há agroecologia, na verdade, sem o trabalho árduo e insistente de mulheres e homens dispostos — seja no governo, ONGs, empresas, universidades, comunidades. Alexandre, do projeto Agroflorestando a Amazônia, que atende oito municípios no norte do Mato Grosso, aponta que, nos oito anos de atuação do projeto, as iniciativas agroflorestais nos oito municípios de abrangência receberam cerca de R$ 50 milhões em subsídios. No mesmo período, segundo ele, o governo liberou cerca de R$ 1 bilhão de subsídios para o milho e a soja.
“ESTÁ CLARO QUE PROJETO DE FUTURO O ESTADO APOIA”.
Todo mundo — e mais a FGV, a ONU, e seu braço de agricultura e alimentação, a FAO — vê na transição agroecológica uma saída para a crise do sistema alimentar insustentável que só põe lenha na fogueira do aquecimento global. No entanto, a agroecologia é subversiva: é capaz até de acabar com a fome e trazer autonomia às populações vulneráveis. E isso não interessa aos poderes que colocam o mercado acima de tudo e o lucro acima de todos. O reconhecimento, pela FGV, da importância de se fazer essa mudança é um alento — e demonstra que não há como barrar a inevitável força de mulheres e homens que se unem no amor e na cooperação em prol da regeneração da vida