Desde o início do governo, certamente movido pelo interesse de aumentar o próprio protagonismo no cenário internacional, o presidente Lula da Silva elegeu como prioritária em seus discursos no exterior a pauta ambiental. Do presidente, já se ouviu coisas assombrosas como “As questões climáticas precisam ter uma governança global para as decisões tomadas serem cumpridas independentemente dos congressos nacionais”, outras bastante severas como “A Amazônia não é lugar para plantar soja” e algumas justas, como a recente reclamação “Desde o Acordo de Paris, a União Europeia promete bilhões que nunca chegam”.
Entre uma e outra declaração, sempre de olho na Amazônia, como se os problemas ecológicos brasileiros fossem restritos à manutenção da floresta em pé, o presidente Lula causa uma certa desconfiança no importantíssimo setor agrário, há muito incursionado nas franjas amazônicas sem o melhor ordenamento. De outra parte, o enfrentamento à pobreza regional permanece empurrado para as calendas com a população mantida sob “aparelhos artificiais”, através de auxílios governamentais que já alcançam, em alguns casos, mais da metade da população.
Lembremos, a propósito, que em início de 2019, os governos de Acre, Amazonas e Rondônia resolveram, a partir de suas secretarias de agricultura, iniciar tratativas no sentido de implantar na zona limítrofe entre os três estados, um grande programa de desenvolvimento, inicialmente divulgado sob o acrônimo AMACRO (AM-AC-RO), que superasse os vínculos e regulamentos estaduais específicos e unificasse por suas semelhanças fundamentais – fundiárias, locacionais, fisiográficas, socioeconômicas, de infraestrutura etc., uma base para projetos de promoção da economia local, antecipando desse modo a evolução de uma dinâmica totalmente espontânea, normalmente geradora de graves problemas em todas as áreas, sendo aquela uma zona de expansão da economia rural. Em resumo, antecipava-se medidas de prevenção contra o desmatamento ilegal, as ocupações irregulares, o surgimento de conflitos e da violência, introduzindo uma verdadeira exploração ordenada de bases sustentáveis.
Leituras ou avaliações ligeiras como a que vimos recentemente divulgadas, da lavra de uma pesquisadora do IN podem, eventualmente, soterrar boas iniciativas por mera comparação de títulos de projetos cujo teor se desconhece. Não seria a primeira vez que viajantes de tendência se despreocupam do aprofundamento do conhecimento e lacram a si mesmos e a opinião pública, com frases e diagnósticos tão peremptórios quanto desprovidos de fundamento.
Emblemática, a utilização da nomenclatura AMACRO. Esta foi há muito substituída por Zona de Desenvolvimento Sustentável – ZDS Abunã/Madeira, fazendo referência a dois dos principais rios da região in casu. Depois da entrada com força da SUDAM e SUFRAMA no processo de definição mesma do projeto, de sua abrangência, referencial e conteúdo, sucessivas reuniões se realizaram na busca de uma modelagem de partida que pudesse, em consequência, conter nos limites aceitáveis e regulares, a antropização da área definida, bem como oportunizar a inovação e a replicação de projetos bem sucedidos ali mesmo, ou em áreas semelhantes, tudo isso com a participação e endosso de secretarias de planejamento, de agricultura, da EMBRAPA, SEBRAE e muitas outras organizações federais e estaduais como, por exemplo, as Federações da Agropecuária, Indústria e Comercio dos três Estados.
O documento “Zona de desenvolvimento sustentável dos Estados do Amazonas, Acre e Rondônia 2021-2027: documento referencial / Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia. ̶ Belém: SUDAM, 2021. 174 p.” estabelece os eixos, programas, diretrizes e objetivos estratégicos com foco em áreas desflorestadas, áreas de florestas naturais, áreas antrópicas agrícolas e áreas urbanas, alvos centrais do Programa ZDS.
A respeito, sugere-se a leitura de um artigo publicado pela Dra. Louise Caroline Campos Löw, Superintendente da SUDAM em Novembro de 2021, do qual destaco: “Com o intuito de criar um cinturão de proteção para a Floresta com alternativas à população, mediante quatro modelos de intervenção customizados às peculiaridades das áreas antropizadas, preservadas, em expansão e de cidades intermediárias, foi criado o projeto da ZDS Abunã-Madeira. Antes conhecida como AMACRO (acrônimo das iniciais dos três estados), tomou outros rumos e nova forma: com a coordenação da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia-Sudam, em conjunto com a Superintendência da Zona Franca de Manaus-Suframa, e mais partícipes, nasceu novo projeto, mais amplo, multissetorial e completamente alinhado à sustentabilidade ambiental.”
Como se vê, há quase dois anos, não há que se falar em AMACRO, menos ainda relacionando-o ao MATOPIBA. Sua concepção inicial foi reformulada e ampliada de modo a considerar globalmente os aspectos interferentes sobre o território, vale dizer, levar em conta todas as externalidades ambientais geradas em um projeto de desenvolvimento com tal dimensão. Seguidas reuniões se deram sob a liderança não mais de um consórcio interestadual, mas das duas principais entidades de planejamento do desenvolvimento regional – SUDAM e SUFRAMA, sob observação do Conselho Nacional da Amazônia Legal e dos ministérios afins, para tratar de sua implementação, o que não se deu efetivamente por motivos que podem ser alinhados sem, contudo, pertencerem à concepção e conteúdo da ZDS Abunã/Madeira.
Não implementado, ou seja, mantida a omissão que alguns pretendem sacramentar via vedação ao desenvolvimento, a realidade apontada pela Dra. Louise Caroline Löw e que deu origem à ZDS Abunã/Madeira continua alarmante para quem tira os olhos das copas das árvores e enxerga os milhões de habitantes da região.
Sem recurso às minúcias de cada informação, parece suficiente referir aos dados da população da região Norte (proxy Amazônia): A pobreza se abate sobre aproximadamente 42% das famílias sendo que 13% em extrema pobreza. Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento – SNIS, os índices de esgotamento sanitário e abastecimento de água potável são 13% e 59% respectivamente. Dos sete estados da região, quatro tem mais pessoas recebendo auxílio do governo do que empregada.
Os cerca de 450 municípios da região Norte, alguns deles gigantescos, como Altamira (PA) de tamanho superior a Portugal, não possuem meios de financiamento mínimo além das transferências federais, notadamente do Fundo de Participação dos Municípios – FPM. Os investimentos são dependentes da capacidade do prefeito de atrair emendas parlamentares. Do total, apenas 1,8% possui arrecadação própria superior aos repasses federais, enquanto na região Sul, são 45,7% (dados do TCU). Compreenda-se: Sem economia não há arrecadação, sem arrecadação não há autonomia de gastos, de investimento, de planejamento, de participação social, de invenção do próprio futuro. Há, isto sim, dependência total de Brasília e suas interfaces internacionais, de seus prédios de vidro e seus homens e mulheres de terno, ocupados em modelar o desenvolvimento nos confins dos igarapés e lagos e rios e aldeias e comunidades das profundezas do Brasil.
Conforme a tal “governança global” com base em mandados emanados da Organização das Nações Unidas – ONU (agenda 2030), Fórum Econômico Mundial – FEM (The Great Reset) e Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas – IPCC que, segundo o ganhador do Nobel de Física de 2022 Dr. John Clauser, faz pseudociência, a região deve ser absolutamente trancada. Tal perspectiva é endossada no Brasil por cientistas da espécie política, como a Sra. Luciana Gatti, cuja entrevista publicada em 23/08/2023 pelo jornal “Estadão”, se destina a demonizar seletivamente dirigentes e selar programas governamentais dos quais desconhece até o nome.
A despeito dos carregadores de cadeados, a ZDS Abunã/Madeira continuará a ser rigorosamente necessária, a menos que algo com a mesma perspectiva seja posto no lugar e efetivamente implementado, para a proteção da floresta e promoção do desenvolvimento socioeconômico sustentável. A superação da pobreza não pode se eternizar como uma quimera para o povo e uma oportunidade de enriquecimento e turbinagem de prestígio para políticos, cientistas e organizações de toda lavra.
De nada adianta, pelo menos para a nossa gente, a assertividade embalada em currículos lustrosos. Aliás, como diria Karl Popper, a ciência vive de dúvidas, logo, toda lacração é, em si mesma, anticientífica. Cá no longínquo Estado do Acre, onde foi germinada a ZDS Abunã/Madeira, fomos antes autores e vítimas do infortúnio imobilista, já nos colocamos no alvo de uma perspectiva zarolha. Apenas recentemente, demos passos importantes no sentido de recuperar o tempo perdido e de abrir novas perspectivas, como bem acentua em vários estudos e artigos, o eminente escritor e pesquisador da EMBRAPA (aposentado) Dr. Evaristo de Miranda. Não aceitaremos retrocessos.
As instituições representativas dos setores produtivos no Acre, de Rondônia e do Amazonas, todas elas, públicas e privadas, participaram com ênfase, desde 2019, da concepção e do desenvolvimento inicial, bem como deram forma e conteúdo robusto ao Programa ZDS Abunã/Madeira. Infelizmente, percebe-se hoje, como antes, uma espécie de imutabilidade da tragédia amazônica. É patente a permanência de suas causas e uma posição aparentemente submissa, dirigida à região com a ideia de desprezo das novas oportunidades em função de uma visão míope e empobrecedora, escancarada em todos os indicadores socioeconômicos da região.
Aceitamos democraticamente a revisão, uma nova contextualização e até uma substituição do programa ZDS Abunã/Madeira, desde que não seja por um vazio de planejamento, um oco de ideias, um zero de investimentos, um caos de atividades ou um cadeado com emblema certificado.
Conhecemos e valorizamos tanto quanto qualquer brasileiro a floresta amazônica e seus recursos. Do mesmo modo, temos consciência da importância estratégica que exerce no contexto global. A floresta em pé, sabíamos antes de nos dizer arrogantemente o consenso do IPCC, é, mais por sua escassez global do que por qualquer outro motivo, um estoque de valor incalculável, impondo-nos, portanto, enorme responsabilidade histórica.
O cuidado com a Amazônia brasileira, repita-se, brasileira, ao mesmo tempo que significa definitiva e inalienável responsabilidade do nosso povo, deveria ser sua tarefa mais nobre e, por isso, a ela teríamos que nos dedicar com prioridade e coragem. Ao invés disso, percebemos aqui e ali, à vista ou velados, sinais inequívocos de aliança com quem nos quer usurpá-la. O momento atual, quando se aproximam decisões globais importantíssimas, é oportuno para cada brasileiro e, principalmente, cada amazonida, se perguntar quem dormirá o sono dos justos sob a copa de nossas árvores, ouvindo o som de nossos pássaros e o chiado dos bichos andando em nosso chão.