Por Globo Rural – 18/11/2018
Centenas de famílias ainda vivem da borracha retirada das seringueiras em reservas extrativistas do Acre. Por ajudar a proteger a floresta, a atividade é valorizada por meio de incentivos de programas do governo e privados.
Uma das mais importantes é a reserva Chico Mendes, que leva o nome do líder seringueiro, defensor da Floresta Amazônica, morto há 30 anos. Ela foi uma das primeiras reservas do Brasil, criada em 1990, dois anos após o assassinato, e fica na divisa com a Bolívia e o Peru.
Abrange sete municípios, entre eles o de Assis Brasil, visitado pela reportagem, e abriga cerca de 10 mil pessoas.
Os moradores dessa unidade de conservação pode tirar da mata parte de seu sustento, com o compromisso de manter a floresta em pé. Podem ter um pouquinho de pecuária (no máximo 30 cabeças) e lavoura, mas a atividade principal tem que ser o extrativismo – e a borracha é o carro chefe.
Os terrenos têm cerca de 200 hectares cada. A terra é pública, cedida aos moradores em contratos de 25 anos por meio de associações.
“Sempre fui seringueiro. Meu pai era seringueiro, desde a época de patrão. Desde quando eu me lembro, eu comecei a andar nas estradas de seringa mais ele, eu tinha 8 anos”, conta Arleudo Farias, conhecido como Bita.
Todos as manhãs, Bita percorre agilizado de 6 a 8 quilômetros de pé em pé de seringueira, para fazer nas árvores os cortes (as linhas) por onde o látex vai escorrer. À tarde, anda outros 6 a 8 quilômetros para recolher o que foi extraído. Essa rotina é cumprida de segunda a sábado.
Diferentemente do que ocorre nas florestas plantadas só para a extração de látex, a reserva é diversa e, nela, as seringueiras não ficam uma do lado da outra. Às vezes, em um hectare de mata, só se encontra duas árvores da espécie. Por isso Bita alcança 100 pés em um dia, enquanto numa plantação seriam cerca de 1.000.
O látex que Bita recolhe em 2,5 dias de trabalho é colocado em uma prensa para endurecer, junto com um coagulante. “Aqui é sob pressão, ela vai retirar toda a água que ela tem para ficar só a matéria prima-bruta”, explica.
O que sai da prensa é o chamado cernambi virgem prensado (CVP). É o jeito mais tradicional de se processar o látex. Na época da seca, toda a produção sai junta com destino a uma indústria na cidade de Serra Madureira, também no Acre.
A fábrica de látex é gerida por uma cooperativa de produtores, a Cooperacre, e processa mais de 500 toneladas de borracha por ano.
Lá, o látex vai para uma espécie de máquina de lavar gigante, que limpa e tritura a borracha, depois entra num forno e sai já no padrão internacional. O produto final é o granulado escuro brasileiro, ou GEB, que tem preço no mercado internacional. É usado na produção de pneus, solado de sapatos, câmaras de ar e correias automotivas.
“A produção da Ásia entra no Brasil com um preço muito baixo e isso faz que com os produtores brasileiros tenham dificuldade no fornecimento para as fábricas”, explica Manoel de Oliveira, superintendente da Cooperacre.
Essa competição internacional impacta os extrativistas e, por isso, a borracha nativa do Acre é incentivada. Além de ter um valor mínimo garantido por uma política federal, recebe subsídios.
“Se fosse só o preço de mercado nós não teríamos nenhum extrativista hoje trabalhando com borracha, porque não paga nem o custo do trabalho”, diz Jorge Rasniviksi, gerente da fábrica que produz GEB.
Esses incentivos, segundo o secretário de Meio Ambiente do Acre, Carlos Edgard de Deus, quase triplicam o valor pago ao trabalhador. “O subsídio é feito através de um tratado de cooperação com organizações do Brasil, no caso (recursos captados pelo) Fundo Amazônia, e internacional, que paga por desmatamento evitado.”
Pagar pela conservação da floresta é cada vez mais comum, em iniciativas do governo ou privadas. No Núcleo da Divisão, comunidade onde o Bita mora, extrativistas participam de um programa de uma empresa internacional de calçados e negociam preços a cada ano.
Em 2018, fecharam um valor 75% acima do mínimo nacional. Essa borracha amazônica vira solado de tênis em uma fábrica, no Rio Grande do Sul, e ganha vitrine em mais de 40 países. Em 2019, serão 118 toneladas do produto e o dobro de produtores envolvidos: quase 200 extrativistas do Acre.
“O nosso cliente, ao decidir comprar esse produto, sabe que está contribuindo, sabe que está participando desses serviços que valorizando tanto a floresta quanto a melhoria de vida das pessoas que estão envolvidas”, diz a economista Bia Saldanha, representante da empresa de calçados.
Memória dos conflitos
O modelo de negócio pensado para o extrativismo é um avanço imenso. Ainda muito presente na memória dos seringueiros a figura do patrão.
“Ele (o patrão) era tipo um posseiro de uma área, era quem dominava os seringueiros. Ele trazia mercadoria e trocava por borracha. Quase todos ficavam devendo, para ficar subordinados a ele, trabalhar mais para ele”, conta Bita. Quase um regime de escravidão.
Há 30 anos, o Acre vivia o auge da disputa entre seringueiro e fazendeiros pelo direito de usar a floresta. Em dezembro de 1988, Chico Mendes foi assassinado em Xapuri, um dos municípios da reserva que hoje leva seu nome.
Ele era presidente do Conselho Nacional dos Seringueiros e Luiz Targino era o vice-presidente. Os dois lideraram um movimento em defesa dos territórios historicamente ocupados por extrativistas. Os fazendeiros recém chegados queriam pasto e os ocupantes antigos precisavam da floresta em pé para sobreviver.
“Aí os fazendeiros começaram a expulsar o seringueiro, derrubar casa, queimar casa de seringueiro, que era para o seringueiro sair”, conta Luiz.
A morte de Chico Mendes não foi a última no Acre em conflitos no campo. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, entre 1989 e 2017, o estado teve 585 casos de disputa por terra, em que nove pessoas morreram.
Nova realidade
A reserva extrativista foi uma conquista para a nova geração, como o casal Erivan de Aquino e Maria Alves. Os dois vivem numa casa simples, com almoço farto e café para visitas. Têm 30 cabeças de gado, o máximo permitido na reserva, e tiram o látex da floresta.
“A gente vende pouco o gado. Mais no caso de doença, ou se for pra comer. A seringa é só ir ali buscar, a gente faz o dinheiro mais fácil”, conta Maria.
O casal recebeu o galpão exclusivo de trabalho, onde transforma o látex em folha de borracha, produto que vai direto para a indústria de calçados. E Erivan entrou ainda em um projeto piloto de reflorestamento, financiado pela empresa. Já plantou 301 seringas.
A meta é mudar a lógica de ocupação das terras. “A gente sabe que aqui a cultura é a derrubada e depois a queima da floresta”, conta o engenheiro Sebastião Pereira que coordenou o trabalho de campo de reflorestamento.
Depois da derrubada, a terra perde qualidade. E em um local isolado como a Amazônia, muitas vezes fica caro manter a produtividade e, por isso, pasto degradado é uma visão bem comum na região. Mas essa terra está virando agrofloresta, com seringueiras intercaladas com outras espécies.
“A diversidade ajuda o produtor a ter renda o ano inteiro. Por exemplo, a castanha vai de janeiro ao final de abril. A borracha de abril a meados de dezembro. E transversal a essas duas, são as frutas, para dar uma incrementada na renda”, diz Manoel de Oliveira, da Cooperacre.
Os seringueiros são guardiões da floresta porque dependem dela para sobreviver. O desmatamento ilegal ainda resiste: 50 quilômetros quadrados foram perdidos nos últimos dois anos.