Por Jacques Távora Alfonsin – Sul21 – 10/05/2018
Entre os argumentos frequentes usados pelos grandes latifundiários nas ações judiciais de reintegração de posse que tenham por objeto terras ocupadas por multidões pobres, sempre figura um eloquente e indignado argumento de violação da lei praticada por elas contra o “sagrado” direito de propriedade.
Nunca ou quase nunca juízes e tribunais, que ouvem esse grito e tratam de demonstrar o poder que têm de agir logo em seu socorro, determinando de imediato “o uso da força pública” para desapossar os réus dessas ações, cogitam de comparar a alegada violação da lei com o que ela própria diz, mas, aí, sobre o modo pelo qual quem a invoca utiliza o bem terra alegadamente esbulhado por aquelas multidões.
Ainda que se desconsidere fato de que, em ações judiciais possessórias, como a sua própria denominação indica, nem se cogite de propriedade mas sim de posse, essa sim devendo ser comprovada, aquele tipo de interpretação da lei é visivelmente parcial, seleciona tendenciosamente apenas uma parte de todo o nosso ordenamento jurídico, de forma ilegal e injusta. Tanto o Estatuto da Terra – por sinal uma lei de 1964, época da ditadura abençoada pela grande maioria dos latifundiários rurais – como a Constituição Federal de 1988, determinam claro que é pelo uso que se faz da terra que se pode julgar se o direito de propriedade sobre ela está, ou não, sendo feito de forma lícita, permitida pela lei. Um uso, passe uma evidência material como esta, não pode ser julgado apenas com a exibição de um título de propriedade registrado em cartório. Uso não é símbolo nem abstração documental. É coisa visível, mensurável concretamente, como prevê, por exemplo, o artigo 186 da Constituição Federal:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
Existem parâmetros, pois de aquilatação de um uso legal da terra, capazes de gerar convicção sobre se o direito possivelmente ainda existente sobre ela permanece válido e eficaz, ou nem merece mais qualquer tipo de defesa. Eles revelam o quanto é inconstitucional e ilegal julgarem-se satisfeitas as exigências de cumprimento das obrigações da/o proprietário de terra rural, apelidando-a, tão só e de forma genérica, como “produtiva”. Uma terra explorada “produtivamente” só sob o prisma econômico, a renda que dela ou de seus frutos é retirada, pode ser muito anti social e anti ambiental, condições flagrantemente vetadas pelos incisos deste artigo 186 da Constituição Federal.
Se for tomado como exemplo o uso das terras rurais brasileiras apenas sob a obrigação de respeitarem o meio ambiente, sem mesmo considerarem-se as multidões amparadas pelo direito de acesso à terra pela reforma agrária, é fácil constatar-se o extraordinário e inconstitucional reducionismo com que a tal produtividade tranquiliza e absolve toda uma forma de exploração da terra como infringente da lei. Alguns dados presentes até em sites ligados à divulgação dos méritos do agronegócio brasileiro se encarregam de demonstrar isso.
Comparem-se os números da população brasileira com os do gado aqui ocupando terra, vivendo sob cuidados bem superiores aos que a iniciativa econômica privada e o Poder Público reservam para o nosso meio ambiente e para seres humanos sem-terra, com direito de acesso à ela, pela reforma agrária. O site Mimi-Veg fazia essa comparação em 12 de julho do ano passado:
“Segundo uma pesquisa do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tem mais cabeças de bovinos (215 milhões) do que gente (208 milhões). E a questão não para por aí: um dos maiores problemas dessa grande população é que apenas uma vaca emite 1000 vezes mais metano que uma pessoa, o principal elemento do efeito estufa (GEE). O gás metano, ou Ch4, é produzido pela decomposição da matéria orgânica e também pela produção da pecuária. Atualmente, o gado é responsável por 16% das emissões mundiais de gases do efeito estufa.
Quando falamos de efeito estufa, a primeira preocupação que nos vem à mente é o gás carbônico, CO2. Entretanto, o impacto do gás metano na mudança climática chega a ser 20 vezes maior do que o CO2. E não é só o aumento do efeito estufa que preocupa com o crescimento da população bovina. O gado consome uma grande quantidade de água (são necessários mais de 9 mil litros de água para a produção de meio quilo de carne) e necessita de muito espaço para a sua criação (praticamente um campo de futebol para cada boi), o que justifica parte da destruição das florestas brasileiras e o gasto de água potável. {…} Por isso, é extremamente preocupante o número absurdo de cabeças de gado no Brasil, que chegou a ultrapassar até mesmo a quantidade da população. A produção de apenas um boi gera gás metano e desmatamento para seu espaço. Multiplique este prejuízo por 200 milhões e reflita sobre o tamanho do problema ambiental que causa ao país (isso sem contar em outros lugares)”.
Pelo site Beffpoint, por outro lado – que ninguém há de acusar ser favorável à reforma agrária – o número de cabeças de gado no Brasil já era bem maior do que o informado pelo Mimi Veg: 218,23 milhões. Ao mais do que justo, necessário, urgente e oportuno estabelecimento legal de um módulo máximo a ser imposto ao direito de propriedade sobre terra, tramitam projetos de lei no Congresso Nacional, visando ampliar a sua capacidade de expansão, inclusive para a sua aquisição por empresas ou pessoas estrangeiras.
Assim, em função do boi, não para garantir o direito do povo se alimentar – uma pequena minoria pode ir ao supermercado comprar carne de gado por força de seu preço escorchante – mas sim para matá-lo e vendê-lo, uma orquestrada e gananciosa invasão do nosso território vai progredindo, em flagrante prejuízo de acesso à terra a quem tem direito sobre ela e à preservação da nosso já mais do que roubada natureza.
O principal sujeito protagonista da antirreforma agrária, portanto, é o boi. Sabendo-se que a maioria dos legisladores brasileiros se encontra aliada ao Poder Executivo ora (des)governando o país, e este desmontou tudo o que podia ser feito pela implementação de reforma agrária, aquele bicho vai continuar mesmo impedindo essa política pública. Estamos todos, então, sob um Poder Público bovino que nos confunde com o próprio animal e nos trata a guilhada. Curvar-se a um tratamento desse tipo nos iguala aos milhões de integrantes do rebanho vítima dessa violenta agressão.